sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Desafio dos 30 Dias - Um Lago na Floresta

História de hoje era pra ser a história de ontem. Percebi, enquanto a escrevia, que tenho uma extrema dificuldade quando me inspiro demais a terminar a história pelo rumo que queria. Essa é inspirada em quadrinhos que li do Tio Patinhas uma vez, a coisa mais linda de todas, que nunca esqueci. Espero que gostem!

Somos de uma tribo nômade do deserto de Cassim. Não é que não existam outros lugares para morarmos, mas esse deserto já é nosso lar, e nos sentimos confortáveis nele. Já estamos aqui há várias gerações e acabamos aprendendo muitas lendas e histórias desse lugar. Afinal, não somos os únicos habitantes desse deserto. E uma delas é a que vou lhes contar agora, que me envolve diretamente.
Quando era criança minha mãe me contava sobre a lenda de um lago que aparecia no meio do deserto a cada 20 anos. Supostamente, uma bela garota vivia no fundo desse lago, mas todos que tentavam se aproximar dela morriam afogados. Era nossa própria sereia, presa em algo que poderia ser considerado uma poça d'água em comparação à imensidão dos outros lugares onde ouvíamos falar da ocorrência de sereias. Era como eu imaginava pelo menos.
Eu tinha uns oito anos quando aconteceu. Não conseguia dormir à noite e acabei notando quando o céu ficou claro. Não como o dia, mas muito mais claro do que qualquer outra noite que eu já havia vivido. Saí da minha tenda e, como toda criança curiosa que existe por aí, fui olhar o que estava acontecendo. Por algum motivo que não sei explicar, a lua estava brilhando muito mais do que o normal e parecia mais próxima também. Comecei a ouvir alguns barulhos ao longe e resolvi seguir até lá e ver o que estava acontecendo. Foi quando descobri que era real.
O som que eu ouvia era uma voz misturada com água borbulhante. A água realmente borbulhava enquanto saía da areia e enchia uma cavidade enorme que tinha ali perto. A voz eu tive um pouco mais de dificuldade de conseguir perceber de onde vinha. Era tão bonita e doce, me encheu imediatamente de calma. Fechei os olhos, levantei a cabeça e comecei a girar em torno dos meus pés, uma brincadeira que eu costumava fazer quando estava entediado. Rodopiava até me sentir tonto e cair na areia, e ali ficava até a sensação de cabeça girando passar. Foi exatamente o que eu fiz naquele momento. E depois que caí na areia, percebi que a voz tinha parado. Abri os olhos e vi uma figura rodopiando lentamente na minha frente.
-Você está bem?
Ela me estendeu a mão. Eu ainda estava tonto e acabei tropeçando. Acabamos caindo, dessa vez os dois, na areia. Eu ria sem parar e ela começou a rir também. E foi ali que percebi que era a mesma voz.
-Cante mais um pouco pra mim, sua voz é linda.
-Você acha?
-Acho! É mais bonita que a voz da minha mãe, e olha que não tem ninguém com a voz mais bonita do que minha mãe.
Era verdade. Minha mãe costumava cantar nos rituais e festivais que fazíamos. Mas não se comparava à voz dela. Parecendo muito feliz com o elogio, mesmo que tivesse vindo de uma criança, ela se sentou com as pernas cruzadas, estendeu os braços para a frente, fechou os olhos e começou a cantar novamente. A mesma canção que estava cantando há pouco. Apurei os ouvidos e percebi que ela tinha um tom um tanto quanto triste, mas não deixava de ser maravilhosa. Não pude deixar de perceber também que a água parecia sair com mais rapidez conforme ela cantava. Quando terminou, colocou as mãos juntas em frente ao peito e murmurou algumas coisas que não consegui entender. Depois jogou as mãos para trás do corpo e se apoiou nelas, os cabelos esvoaçando com a brisa noturna. Ela estava olhando para a lua e eu para ela.
Ficamos daquele jeito longamente até que ela rompeu o silêncio.
-Você é um garoto muito especial, mas devia ir para sua casa agora. As coisas vão ficar perigosas.
-Por quê?
Estava perguntando mais para saber o motivo de ter que ir embora. Que perigos podiam existir ali, no meio do deserto? Ela respirou profundamente e levantou de um salto.
-Está chegando.
Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, senti uma pancada na parte de trás da minha cabeça e apaguei. Só acordei no dia seguinte, deitado na frente da minha tenda. Já era dia, mas corri para o local onde estava a água. A água ainda estava lá, mas não tinha nem sinal dela. E eu nem tinha perguntado seu nome.
-Venha pescar com a gente!
Algumas pessoas estavam lá, com varas de pescar improvisadas, todos sentados ao redor do lago que tinha se formado. Sentei ao lado de minha mãe, abracei os joelhos e fiquei pensando na moça. Se ainda voltaria a vê-la. A lua não estava brilhando forte naquela noite e ela não estava em nenhum lugar que pudesse ser encontrada. Íamos partir em alguns dias, e por todos eles voltei ao lago. Em um deles tive a impressão de que tinha algo bem no meio dele, mas estava bem longe pra conseguir distinguir o que era.
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Lembro que com vinte e oito anos ainda me lembrava daquela história. Minha mãe me cobrava que eu me casasse,pois estava perto da idade, mas não queria. Não se não fosse com ela. Depois daquele dia e por muitos anos que se seguiram, ainda lembrava perfeitamente da sua voz, do seu rosto e da sua risada. Preparei um presente digno dela para pedi-la em casamento e minha mãe, curiosa que era, quando o encontrou soube na hora para que propósito tinha feito. Tinha começado a me atormentar desde então. Provavelmente esperava que fosse para alguma das garotas do nosso povoado. Nunca tinha lhe contado o que tinha acontecido naquela noite. No entanto, tinha certa influência sobre o nosso líder. Ele era meu amigo de infância, então me tinha como um conselheiro. Quando a coisa aperta, duas cabeças pensam melhor que uma. Consegui com certo esforço que nossa caravana estivesse próxima o suficiente do lugar em que estivemos quando eu tinha oito anos. Não é que eu tivesse medo que desconfiassem, mas eu tinha esperança de vê-la de novo. Se a visse dessa vez com certeza a pediria em casamento. Mas tinha um medo dentro de mim. E se ela não me reconhecesse? Afinal, eu era uma criança na época. Nem me passou pela cabeça, mas e se ela tivesse envelhecido? Acreditava do fundo do meu coração que ela continuaria linda, mas e se ela me rechaçasse por esse motivo? Insistiria até a morte!
Naquela noite a lua brilhou novamente. Corri para o local e, mesmo vendo as águas que jorravam para encher o lago, me enfiei dentro delas e fui em direção à voz. Tinha mesmo um lugar bem no meio do lago e era lá que ela estava. Então descobri meu primeiro obstáculo. Não sabia seu nome. Escalei o monte e cheguei lá me sentindo exausto. Olhei pra baixo e estranhei, o monte não parecia maior do que vários montes de areia que já tinha tido que atravessar pelo deserto com a tribo. Virei meu rosto e quase caí monte abaixo, pois dei de cara com o rosto dela praticamente colado no meu.
-Você voltou.
Sua voz parecia ter uma alegria contida e um tom muito reconhecível de preocupação. Olhou para trás e depois de volta pra mim.
-Não devia estar aqui.
Rapidamente peguei o presente que tinha preparado, um enfeite de cabelo feito com penas de aves raras e pérolas que cultivadas debaixo do sol. Me ajoelhei e mostrei o presente.
-Quero que case comigo - disse rapidamente, sem pensar - e também quero saber seu nome!
Ela pareceu em choque por uma fração de segundo após ouvir minha proposta e se pôs a rir imediatamente após eu perguntar seu nome. Era incrível, pois ela estava exatamente como eu me lembrava.
-Meu nome é Naara - ela começou, enquanto estendia sua mão para o nada - e aceito sua proposta, se você passar no teste.
Quando ela disse aquilo, em sua mão estendida começou a se formar algo que parecia uma lança de areia. Ela a jogou para mim e eu a apanhei. Lembrei da história que minha mãe contava e dos homens que tinham morrido. Se era o risco que tinha que correr para me casar com ela, a enfrentaria de bom grado. Esperei que ela terminasse de conjurar sua própria lança e me coloquei em posição de ataque. Ela pareceu satisfeita.
-Ótimo, parece que não vou ter que te ensinar como faz. Se prepare, ele já vai aparecer.
Ele? Eu não estava entendendo nada, mas mantive minha posição. Foi uma surpresa para mim quando, de dentro da água, um, tentáculo gigante surgiu. Foi muito rápido e eu não consegui reagir. Ela me protegeu e foi pega. Gritei seu nome. Não queria acreditar que estava sendo separado dela logo após tê-la encontrado depois de tanto tempo. No entanto, a separação foi curta, pois logo em seguida um tentáculo que bem poderia ser o mesmo apareceu e me puxou para a água também.
Achei que sua intenção era me afogar então prendi minha respiração. No entanto, quando não aguentava mais, acabei soltando o ar, que saiu com a mesma facilidade que teria saído se eu estivesse respirando ar. Tentei inspirar e entrei em pânico quando senti como se uma gosma estivesse preenchendo meus pulmões. Mas era respirável. Tentei me acalmar um pouco e entender a situação. Percebi que na verdade, o tentáculo que me prendeu não era o mesmo que pegou Naara, mas pertencia à mesma criatura. Uma criatura enorme, diga-se de passagem. Pensei em me desvencilhar do tentáculo mas, se o fizesse, perderia a chance de salvá-la. Tinha perdido minha lança e a única coisa pontuda que tinha em minha posse era o prendedor que tinha preparado para ela. Não vi muitas outras opções. Nadei com todas as forças que tinha para perto do monstro e finquei a presilha várias vezes, em vários pontos. Não estava vendo naquele momento, mas do outro lado do monstro, ela estava usando sua lança para fazer o mesmo. Não sei quanto tempo nossa luta durou, mas sei que foi longa e cansativa. O monstro foi derrotado e começou a afundar. Naara me avistou, nadou até mim, me pegou pela mão e nadou logo atrás do corpo do monstro. Não me atrevi a perguntar o porque de estarmos nadando para o fundo do lago ao invés da superfície. Até que chegamos do outro lado.
A paisagem era muito, muito diferente do deserto. Tinha vegetação abundante por todos os lados, de cores bem diferentes das que eu costumava ver em minha terra.
-Não podemos demorar.
Ela me puxou com toda a força até uma das árvores mais próximas, se agarrou em um cipó e puxou. Ele, em reação, nos içou para cima. Quase me senti sendo pescado. Instantes depois pude perceber várias criaturas se aproximando da carcaça do monstro e a devorando, até que não sobrasse mais nada. Foi tão rápido que imaginei que, se tivessem a capacidade de nadar, teriam derrotado a criatura muito mais rápido que eu e Naara em nossos esforços.
-São carniceiros - ela começou a explicar em voz baixa - mas temos que tomar cuidado, pois não conseguem se controlar muito bem quando sentem o cheiro de morte. Muitas pessoas já perderam a vida por não respeitarem essa lei simples.
Então olhou pra mim e sorriu. Apontou para o prendedor em minha mão e, quando olhei para ele, estava em frangalhos. Ela o tomou de minha mão antes que eu pudesse reagir.
-Vou ficar com ele. Mas seria bom você voltar pro lado de lá. O tempo passa de forma diferente do lado de cá e do lado de lá. Não vai querer perder a sua caravana.
Senti uma enorme tristeza por pensar que teria que me separar dela novamente. Como se sentisse essa dor, ela tomou minha mão e me acompanhou por todo o caminho de volta. Lá, a encarei longamente enquanto segurava suas mãos entre as minhas.
-Se casaria mesmo comigo?
-Você se provou bastante útil contra aquele lá. Mas somos de mundos diferentes.
Eu entendia aquilo e baixei a cabeça, pensativo. Devia haver alguma forma de mantê-la aqui, do meu lado.
-Nos veremos de novo?
-Quem sabe? Se for nosso destino.
Me roubou um beijo e pulou de volta para a água em um instante. Não tive coragem de segui-la, mas esperei até de manhã para ver se reapareceria. Não aconteceu. Voltei para minha aldeia na certeza de que, dali vinte anos, voltaria para revê-la. E que dessa vez, ficaríamos juntos, com certeza.
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O tempo às vezes é cruel com as pessoas. Conforme o tempo passava percebia que perdia minha convicção de que poderíamos ficar juntos. Eu já teria quarenta e oito anos e ela ainda estaria tão jovem quanto na primeira vez que a vi. As obrigações sociais fizeram com que houvesse pressão não só por parte de minha mãe mas de toda a aldeia para que eu me casasse. O fiz. Tive dois filhos e, quando cheguei aos quarenta e oito anos, já tinha tido dois filhos. Não voltei ao lago. Meus filhos cresceram e se tornaram adultos. Já eu, me tornava um velho. ninguém ligava muito para a falta de um velho quando ele sumia, pois muitos deles preferiam morrer sozinhos no deserto que dar trabalho para suas famílias. Pensei que aquela seria minha última chance de vê-la antes de partir do meu mundo. Então parti em uma jornada até o monte em que ela aparecia quando cantava para as águas transbordarem. Cheguei cedo, mas foi totalmente recompensador. Ela apareceu na minha frente e, quando meu viu, abriu aquele sorriso que eu tanto amava.
-Você voltou!
Estendi meus braços e ela se deixou cair neles, me abraçando.
-Como sabe que sou eu? Envelheci tanto...
-Eu sempre sei.
Ficamos quietos por um tempo, só apreciando o momento. Foi quando lembrei de um fato importante.
-Se um monstro aparecer dessa vez, não acho que tenho forças pra lutar.
Ela sorriu e tomou minha mão. Mergulhamos e senti novamente aquela sensação peculiar da gosma entrando em meus pulmões. Parecia mais pesado e denso do que me lembrava. Do lado de lá, ela colocou minha mão em seu rosto e fechou os olhos, com uma expressão que parecia muito feliz.
-Agora podemos ficar juntos. Derrotei o último na última vez que subi. Fiquei um pouco triste de não ter te visto, então voltei hoje de novo, para ver se te encontrava. Não sabia o que ia fazer se não encontrasse. Durante todo a minha vida só aprendi duas coisas. Uma, a lutar contra os monstros. Duas, te amar. Não quero que vá embora dessa vez. Fique comigo.
-Mas eu estou velho.
-O tempo passa diferente aqui, lembra? Podemos viver muito tempo juntos ainda. Você quer ficar comigo?
Segurei sua mão e a trouxe para meus lábios.
-Não tem nada que eu tenha querido na vida mais que isso.

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